...e depois, com bigodes de leite, pedem mais paciência e esforço ao povo, que a "vaca 'tá seca".

sábado, 16 de janeiro de 2010

VAI PARA A TUA TERRA


Acabei de ler a entrevista do grande Mário Crespo, um conservador heterodoxo como eu não me importava de ser.
Gostei particularmente da parte onde relata a saída intempestiva do Ultramar e do seu “ainda hoje não gosto de bagunça”.
Identifiquei-me com a sua história, existe uma espécie de espírito de grupo.

Sou o que se chama um retornado.
Em miúdo ouvi muitas histórias de gente, como os meus pais (nativos de Angola) e avós, que tiveram que desarmar a tenda de repente: olha, pega na trouxa e desaparece. Deixas o emprego e a casa (com sorte, levas o recheio e o carro) e vai-te embora! Chegas a Lisboa, arranjam-te uma pensão e vais para a bicha da roupa e dos cobertores dados por uma coisa chamada IARN (instituto de apoio ao regresso de nacionais*). Ah, o dinheiro que levares não vale nada**!

Com pena minha, esqueci as histórias quase todas (lembro que o meu pai recusou um Alfa que um gajo com um stand ofereceu, não o conseguia trazer) e gosto de ler relatos como o desta entrevista.
Imaginam meio milhão de pessoas em migração/exílio – uma debandada, quando não uma fuga – expulsas da terra onde nasceram e mandadas para outro “clima” (em todos os sentidos), para uma terra que mal - ou sequer – conheciam? Esses não foram recambiados para a “metrópole”, porque nunca lá tinham estado.

A integração até foi bem sucedida e todos refizeram a vida, mas fica nuns a saudade, noutros um sentido de injustiça pelo corte quase epistemológico nas suas vidas - que eram boas, as pessoas eram felizes.
A maioria acha que a descolonização foi apressada e sem aviso, o poder vigente – marcadamente ideológico – não cumpriu o que prometeu à maralha e não acautelou o processo de passagem de poder. Mais, não só depôs armas, como ainda apoiou movimentos de libertação em detrimento de outros. Houve um sentido de abandono.
Tudo isso burilado explica o asco da maioria deles por Mário Soares, julgo que então ministro dos negócios estrangeiros, a quem se atribuem responsabilidades.
E explica que o CDS tenha subido dos 7 para uns míticos 16% em 76. Como bom chefe-de-família, o meu pai disse à minha mãe "tú vais votar neste", motivo suficiente para ela se tornar eleitora do PSD...

Acontece ainda que os retornados era muita gente (por defeito, 6% da população nacional e 11% em Bragança), com camaradagem e iniciativa, mais desempoeirada - porque mais longe da saia de Salazar - e nem sempre foi bem recebida pelos portugueses de primeira, que ou os achavam exploradores de pretos, ou achavam que vinham partilhar o bolo.

Vim de lá com quase 4 anos, não me lembro de nada e, por isso, não tenho nostalgias. Essa parte da história familiar raramente me ocupa a cabeça.
Sempre que o faço, lembro-me dum "caro colega" (termo algo usado na minha classe profissional) que, na brincadeira, nos chamava portugueses de segunda.
Não levava a mal. Não tenho qualquer ressentimento ou vergonha, apenas muito respeito por quem, com a minha idade, teve que começar tudo de novo, assim-num-repente. É coisa que me ia custar...
Como disse uma vez Marques Leandro (ex-secretário de Estado), essa gente substituiu o estigma de retornado em título de que muito se orgulham.

Não posso acabar sem declarar que eu sou a favor das independências dos “países-irmãos”. Sem hesitação alguma.

* Com Director, subdirector e 3 vogais e um conselho consultivo com uns 10 vogais. Agora a graça é que não eram pagos - eram outros tempos, onde é que isso se via agora?
** Lembro-me dum molho de notas angolanas, que ainda existe algures guardado. Simplesmente, dum dia para o outro, perderam o valor comercial.

1 comentário:

  1. Acabei de ler a dita entrevista ao Mário Crespo. Para quem tem um grande poder nas mãos, tem sentido de inconformista, o que hoje em dia, é raro. Revela um grande profissionalismo naquilo que faz e é um dos grandes pivot's da comunicação social, a par do Miguel Sousa Tavares e da Margarida Marante.
    Comentando o ser "retornado", nem ouso mostrar esta posta ao meu pai, que ficaria irritadíssimo e começava logo aos berros a dissertar novamente o que tinha acontecido. O meu pai nasceu em Angola, em São Salvador do Congo (hoje M'Banza Congo), onde conheceu a minha mãe e casou, e por pouco eu não nascia em Angola, só porque fugiram de lá em 1975 com o que tinham no corpo, mais o Opel Kadett do meu avô e algum dinheiro do que tinham conseguido vender da mobília da casa que tinham. O meu pai sente-se espoliado, como tantos outros que tinham as suas vidas nas colónias (o meu pai também é contra a palavra "colónias": segundo palavras do meu pai, na altura eram províncias ultramarinas, logo, ele é Português como qualquer Português nascido na metrópole. Pelo que sei, este termo "províncias ultramarinas" era muito usado pelo regime, alegando sempre nas assembleias da ONU que Portugal não tinha colónias, mas sim, províncias ultramarinas, desde o Minho até Timor.)
    Para terminar, gostei muito de ler esta posta, Luis. Mas isso nem era preciso de dizer, já é um hábito.

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